"Só não viu quem não quis"
Enquanto nos sentamos para escrever estas palavras, dois meses nos separam
do momento em que elas serão lidas na revista da Mostra de Teatro da UFRJ. Mais
dois meses de aprofundamento da pesquisa, de tudo o que nos aproxima e separa
dela. Dois meses também definem o nosso tempo de ensaio até aqui. Parece
adequado, portanto, neste ponto central da trajetória do processo, falar do motivo, da
causa, daquilo que nos atravessa desde o princípio, sem adornos ou conclusões
extremas.
Uma peça e um filme, contornados pelo ímpeto de alimentar, através de uma
presença estética de outra ordem, uma nova experiência capaz de nos retirar da
cegueira diante daquilo que o cotidiano urbano insiste em chamar de coloquial ou
trivial. Tornar sensíveis os fluxos de gente, as trajetórias mecânicas que instauram a
desatenção quanto ao que é marginalizado pelas políticas públicas e também pelo
olhar do cidadão, o aumento das passagens de ônibus e os rasgos ocultos dos corpos
vestidos. É diante da emergência dessas imagens naquilo que criamos enquanto
artistas, no nosso trabalho diário, na função que exercemos, que podemos igualmente
transmutar este fazer em ação civil. Quando o pensamento não cabe nele mesmo,
nem na cena, nossa existência nos solicita novos deslocamentos sensíveis. Arrombar as
geometrias e configurar novos espaços.
Para este efeito, o trabalho é composto por pesquisas individuais desenvolvidas
em sala de ensaio, que, levadas para cenários externos a partir das propostas
apresentadas pelos atores, são a força-motriz de um sistema de retroalimentação
entre teatro e cinema, que vislumbra descortinar as interações éticas e documentais
dessas diferentes formas de expressão artística, bem como fazê-las encontrar
interfaces sustentáveis de criação coletiva, com atenção especial para as práticas
performativas.
Nestes dois meses passados, nestes dois meses distantes, o que nos atravessa e
nos torna responsáveis diariamente pelo trabalho que desenvolvemos vem da
autonomia e da força das novas poéticas criadas a cada sala de ensaio, a cada dia de
trabalho, através da força da voz da Juliana que denuncia nosso próprio fazer para nos
questionar, do compromisso do Caio com verdades que deveriam ser óbvias expostas
por uma vivacidade única, do engajamento do corpo do Rafa sem rodeios, da lucidez
da Bel diante daquilo que deve ser dito, do movimento corajoso do Gunnar para
derrubar as barreiras do encontro na cena, da sutileza comprometida do Alonso com
nossos desejos, da brutalidade da Nina em prol dos atravessamentos, da precisão
inocente do Danilo, da observação sensível da Nati capturando tudo, do Tom, do
Shane, dos Porcos Militares, Natashas e Carmens, dos santos mortos, dos doentes, dos
jovens, dos índios e, como dizemos na peça, dessa coisa da juventude de se doar.
Não, da juventude não, do artista de se doar pra alguém, de se entregar de corpo e
alma. Aliás, hoje foi o primeiro dia da minha sobrinha no balé, então, também tem
dessas coisas.
Isadora Malta e Lucas Canavarro
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